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#1
2023 foi um ano atípico eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar. Eis que imediatamente minha mente emendou com um e qual ano recente não foi atípico? Mas ainda assim, diria que na jornada até aqui, consigo classificar como mais atípico que de costume. Que costume?
Acabei indo para Porto Alegre de última hora no final do ano passado. Dada a crise da vez, pareceu um escape desejável para coroar um certo progresso eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar.
E em boa medida foi. Reencontrei amigos queridos que não via há muito tempo. Outro que não via fazia quase 12 anos. E mesmo com tanto tempo e distância entre nós, foi excelente perceber que tudo seguia igual. Ambos na condição de turistas na própria cidade, conseguimos rapidamente estabelecer a dinâmica de outrora. Ela obviamente não é realista nem mesmo sustentável nesse estágio da nossa vida, mas o simples fato de existir como tal e ainda poder ser retomada no espaço e no tempo é um regozijo por si só eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar.
Mas já nos meus últimos dias por lá, ressurgiu aquela sensação um pouco desconfortável de não se saber bem onde está. Não chega a ser um não pertencimento, pois no minuto em que piso no saguão do Salgado Filho eu já saio quicando como em nenhum outro lugar. Não necessariamente de felicidade, mas como um jogador recém-aquecido substituindo um colega no segundo tempo eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar. Mas é meio que entrar quando já está estourando o tempo regulamentar, então ou se bota total foco e profissionalismo no tempo exíguo ou simplesmente fica-se fazendo de morto o que pode ser decisivo dependendo do estado da partida eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar.
#2
Nos parágrafos acima sequestrei, torturei e possivelmente desfigurei o cacoete do narrador-protagonista de Woodcutters (Derrubar Árvores, editado no Brasil pela Todavia), atualmente o meu livro favorito do escritor e dramaturgo austríaco Thomas Bernhard.
A trama é bem simples: o narrador está num jantar da alta burguesia cultural de Viena e, enquanto os participantes aguardam a chegada de um ator que é o convidado de honra, fica observando e tecendo comentários a respeito de tudo e todos. Além de descrições pouco lisonjeiras, em especial da cidade de Viena e do seu ethos, ele também acaba rememorando o dia anterior, onde foi a um enterro de uma mulher com quem mantinha uma relação de proximidade (não sabemos de que natureza). Há ainda um embate com uma pessoa das letras que, depois de muitas páginas de pura acidez e destruição, acaba por revelar-se quase uma empatia, permeada por algum arrependimento do protagonista por não ter levado uma vida mais simples, na forma de um cortador de árvores que dá título ao livro.
O cacoete é repetido à exaustão em praticamente todas as páginas do primeiro terço do livro, num hábito bastante comum na escrita de Bernhard. Andar em círculos, demolir tudo e todos, mas revelar uma certa nostalgia por algum tempo ou lugar é algo que costuma acontecer com frequência nas suas narrativas. E, apesar de tudo soar excessivamente niilista para muita gente, o que é totalmente compreensível, é preciso ressaltar o humor que se embrenha pelo meio de tanta ruína. Nesse caso específico, Woodcutters é o livro que mais me fez rir na vida, gerando por vez acessos que me interrompiam a leitura por horas ou até dias.
Especialmente por conta do que foi escrito em Woodcutters e da forma como se refere à Áustria em toda sua obra, Bernhard foi frequentemente acusado de ser um Nestbeschmutzer na imprensa e em outros meios culturais. Obviamente o termo em alemão é mais, digamos…específico. Mas nesse caso, cuspir no prato em que comeu à exaustão dá ainda mais força para o alívio cômico que invariavelmente acaba chegando, seja de forma direta ou somente ao se contemplar o absurdo de algumas das suas hipérboles. É o caso da minha passagem preferida do livro, em que o narrador dá voz ao convidado de honra que parece espelhar seus sentimentos em relação ao cenário artístico de Viena:
The story of the directors of the Burgtheater is not just a scandalous story, said the actor, it’s possibly the saddest of all Viennese stories. Vienna is an art mill, the biggest art mill in the world, in which the arts and artists are ground down and pulverized year in, year out; whatever the art or whatever the artists, the Viennese art mill grinds them all to powder. It grinds everything to powder—everything, said the actor, quite ineluctably. And the curious thing is that all these people jump into this art mill entirely of their own volition, only to be totally ground down by it. Even the Burgtheater directors jump into it of their own free will, having in some cases spent their whole lives frantically seeking an opportunity to do so, falling over themselves to jump into this art mill in which they’ll be totally ground down. Totally ground down, totally pulverized, exclaimed the actor.
Bernhard, Thomas. Woodcutters (Vintage International) (p. 170). Knopf Doubleday Publishing Group. Kindle Edition.
Esse livro de Bernhard causou tanto furor que chegou a ser recolhido das prateleiras depois que um juiz deu ganho de causa para o compositor Gerhard Lampersberg, que entrou com um processo alegando ter sido difamado ao se enxergar no casal Auersberger, os donos do apartamento onde se desenvolve a história.
Em uma entrevista logo após o lançamento do livro e antes deste ser confiscado, Bernhard elabora um pouco mais suas ambições com a obra e do seu fazer literário de um modo geral. Ali ele deixa bem claro que buscou uma espécie de catarse e que, apesar de vertiginosamente se manter mais no canto da aniquilação, o que ele busca ao final de contas é a grande união de tantas antíteses. Dessa forma, no momento em que conseguem escorrer pelas tantas rachaduras que vão aparecendo pelo caminho, a empatia, beleza e nostalgia acabam por ter um impacto de uma epifania:
FLEISCHMANN: And would you say the excitement increases the closer one gets to the conclusion?
BERNHARD: An excitation is something that keeps increasing until the very end. And so the book naturally ends in a state of total excitation by the city of Vienna, in embraces and annihilation all at one go, in a hug-like chokehold on Vienna, and [in my saying] Vienna, you are the best and at the same time the most horrible of all cities, as I daresay anybody else would about his home town.
#3
Algumas recomendações de coisas que me impressionaram, fascinaram ou emocionaram recentemente:
Filme:
Espetacular o Anatomy of a Fall. Direção firme e econômica, um roteiro incrível e atuações fora de série. Mas o que mais me impressionou foram os elementos que vão sendo introduzidos para aumentar o ruído e a sensação de ser impossível extrair “a verdade” num tribunal: o testemunho do menino cego, a acusada num tribunal em Grenoble ouvindo perguntas em francês e respondendo em inglês, os áudio gravados em segredo pelo finado marido sendo usados fora de contexto pela acusação. E de todos os lugares, é incrível vir logo da França a renovação do gênero “filme de tribunal”. Pra ver e rever por anos.
Música:
Caroline Polachek no Tiny Desk: Desire, I Want to Turn Into You entrou em muitas listas de melhores discos de 2023 com justiça. As razões são diversas e recomendo ouvir o disco também.
Mas essa apresentação tem muita coisa especial, a começar pela cantora. Acusada frequentemente de usar auto-tune, o que se vê aqui não é só a sua afinação natural ou o alcance e controle abismais: em alguns momentos percebe-se nesse cenário intimista que ela consegue replicar até mesmo modulações de voz que ficariam a cargo de efeitos de estúdio. Alguns comentários vão na linha de é um sintetizador humano ou é a primeira vez que ouço alguém que tem uma pedaleira de efeitos embutida na laringe. Como se não bastasse tudo isso, a banda é muito boa, com destaque para os violonistas e a vocalista de apoio.
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